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Entrevista de Diogo Ramada Curto sobre a obra de Marc Bloch

 

“Marc Bloch ajuda nos a distinguir entre memória e história” – Diogo Ramada Curto, Diretor da Biblioteca Nacional de Portugal

 

Diogo Ramada Curto, diretor da Biblioteca Nacional de Portugal, é responsável pela coleção História & Sociedade, que publica hoje a nova tradução da obra de Marc Bloch, Apologia da História ou o Ofício de Historiador, pelas Edições 70.

Nesta edição, assinou uma extensa introdução que explica e contextualiza a obra, sublinhando a sua importância para a compreensão da historiografia contemporânea.

Guillaume Boccara, adido de cooperação científica e universitária, conversou com ele para saber mais.

 

1. Porque é que considera importante voltar a publicar um livro de reflexão sobre o ofício de historiador, escrito há mais de 80 anos?

Respondo à sua pergunta, argumentando que as questões da história e da memória estão na ordem do dia e habitam o nosso quotidiano. As razões desta presença são de vária ordem, mas prendem-se, sobretudo, com políticas identitárias e lutas ideológicas definidas a partir do presente. Refiro-me, claro está, às questões do racismo, do modo de imaginar as comunidades a que pertencemos, da desigualdade de géneros e da discriminação social e económica. Sobre cada um dos conceitos e dos processos sociais a que os mesmos se referem, há a necessidade de fazer uma história crítica, que esteja situada para além das projeções do presente, as quais são sempre anacrónicas. Isto é, as memórias que temos do passado não são, necessariamente, o equivalente da visão que uma história crítica proporciona. Tal como as tradições tantas vezes inventadas, os lugares da memória necessitam de ser estudados pela história, mas não podem ser tomados como resultado de uma história crítica, escorada em problemas de investigação e dispondo de documentos de prova.

Ora, Marc Bloch ajuda-nos a distinguir entre memória e história. Mais: ensina-nos a perceber que   a história, feita com rigor e no contacto com as ciências sociais, não obriga. Liberta-nos da memória do passado, justamente porque procura, nas grandes estruturas, explicações para compreender as mudanças sociais. Ao mesmo tempo, ajuda-nos a situar, no quadro de uma pluralidade de factores explicativos, o papel do indivíduo e a sua margem de escolha.

No seu livro de fim de vida, tal como no seu itinerário, Marc Bloch, o historiador por excelência da Idade Média, percebeu bem a necessidade de compreender as grandes estruturas, tanto geográficas como económicas, sociais e mentais, bem como as escolhas e comprometimentos responsáveis que o levaram a não pactuar com o invasor nazi, na França ocupada. Os riscos individuais que assumiu o velho combatente da Grande Guerra, bem como o seu modo de não colaborar com o inimigo permitem avaliar a sua grandeza como cidadão.

 

2. No seu livro, Marc Bloch sublinha a importância de divulgar os contributos da disciplina histórica e de utilizar um vocabulário acessível a todas e todos, incluindo os mais jovens. Como diretor da Biblioteca Nacional, qual é a sua opinião sobre este aspeto da disseminação do conhecimento histórico? A disciplina de História tem um papel na construção da cidadania e de uma sociedade democrática?

Acima de tudo, Bloch sabia bem que a história era um instrumento imprescindível para compreender as sociedades em que vivemos. Assumiu, também, que interrogamos as sociedades a partir dos problemas do presente, só assim nos podemos envolver no estudo rigoroso do passado, mas as respostas encontradas não poderão ser projeções anacrónicas do presente no passado. Este envolvimento com o sentido crítico da história implica uma consciência ética de forte sentido cívico e democrático. Assim, a militância por uma história rigorosa e científica, em Marc Bloch, vai a par com a luta pela liberdade e por uma sociedade mais igualitária.

Quanto à questão da linguagem, dependendo dos diferentes estilos e dos vários modos de comunicação (recensões críticas, artigos, comparações, obras de síntese, etc.), Bloch almejava sempre a clareza. Derrapagens em estilo pomposo e em construções artificialmente literárias estavam fora do seu horizonte.

 

3. Num momento em que as fake news e as falsificações históricas são cada vez mais frequentes, como vê a responsabilidade do historiador? Tendo em conta que, segundo Jacques Le Goff, o ofício de historiador está enraizado na busca da verdade e da moral (no prefácio de Apologie pour l’histoire ou métier d’historien), qual considera ser o papel do historiador nos dias de hoje?

Marc Bloch escreveu, com base na sua experiência da Grande Guerra, um capítulo exemplar onde analisou a questão da circulação das notícias em teatro de guerra, insistindo nas deturpações a que elas ficam sujeitas. Trata-se de uma análise pioneira da questão das fake news que necessita de ser completada pela lição de método que se encontra no livro agora lançado, em nova tradução integralmente revista. Os seus estudos introdutórios têm por objetivo inverter os termos de uma troca desigual entre o meio cultural português e a França. Acho também que avançam no sentido de colocar a obra de Bloch no contexto de pertinência que lhe dá sentido.

 

Livro

 

Institut français du Portugal